A segunda vez que Carlos viu Luíza, ela sorria sem pressa de devolver o branco dos dentes ao céu da boca. A morena, de pele dourada, estava deitada sobre a canga de estampa indiana e batia a pontinha dos pés na areia de um jeito descompassado, embalando-se na diversão de seus headphones. Naquela tarde, Luíza trocou a aula de fotografia da faculdade de cinema pela companhia do sal e do mar. Na visão de Carlos era assim: Luíza em primeiro plano - linda! A bicicleta ao lado, também deitada na areia; na sequência, a garrafinha d'água, o protetor solar e a bolsa. Carlos gravou aquela cena com retinas zelosas, imerso na precisão para longas distâncias que só os homens têm, registrando frame a frame, capturando os milésimos de segundo com a disciplina de um relógio britânico em terras tupiniquins. Estava no ângulo mais favorável que poderia haver - o do sorriso de Luíza. Nos dias que seguiram, continuou editando as cenas na memória, percebendo-se extasiado com o jeito que Luíza levantava, alongava-se vagarosamente, esticava os braços sobre a cabeça e terminava batendo as mãos contra as coxas para tirar o excesso de areia da pele. O que os amigos mais ouviram, na época, era que ele havia encontrado a perfeição em mulher. Perfeita até os infortúnios cotidianos começarem a atrapalhar a relação que os dois tiveram.
Luíza e Carlos haviam se conhecido uma semana antes daquele dia na praia. Estudavam na mesma universidade, o turno coincidia e alguns amigos também. Ele cresceu na cidade cinza e barulhenta, pediu transferência do curso de jornalismo para morar na praia, levar uma vida mais tranquila, repor vitamina d, respirar ar puro, diminuir as crises de pânico. A verdade é que a nova cidade só o fazia transpirar - fosse pelas altas temperaturas que os termômetros acusavam, fosse por Luíza. Na primeira festa da turma, ficaram juntos. E essa foi a décima segunda vez que Carlos viu Luíza. De lá pra cá, engataram um romance. Três meses e já estavam dividindo a pia do banheiro, a cama e o aluguel, até, claro, começarem as brigas. Antes delas, a história é a mesma dos novos casais: sexo-sofá, sexo-cinema, sexo-sexo-sexo, até passar para sofá-cinema, sofá-sofá, sexo, brigas-sexo-brigas, brigas, sofá. Um leque variado de desavenças soprou ventos difíceis. Foi aberta a temporada de picuinhas. Luíza não suportava cheiro de leite e Carlos deixava o copo sujo de nescau, todas as noites, no criado-mudo - que amanhecia tomado com formigas. No primeiro mês, ela levou na boa, um mês e nem mais um dia.
No mês seguinte, ele continuou por implicância, dizia que Luíza ficava linda, brava. Carlos passou a alimentar uma implicância e impaciência pela coleção de orquídeas de Luíza, que a essa altura já não sorria mais. Na guerra dos sexos, ambos acusavam-se e era sempre o outro que deveria estar mais atento ao vencimento das contas, disposto para dar jeito na louça suja, vigilante na comida do cachorro, cuidadoso no revezamento do lixo do banheiro, animado para apagar a luz e para o sexo. Acontecia que Carlos adorava a noite e Luíza era solar. Na tardinha daquele que seria o último fim de semana juntos, começaram a brigar pelo novo seriado que queriam assistir. Luíza apertou o pause do controle remoto e pediu um tempo, disse que era melhor devolverem as chaves e entregarem o apartamento aos donos. Carlos tomou um susto e profundamente ofendido, dizia não confiar nessa coisa de tempo, era coisa de gente masoquista, instável, indecisa, infantil. A verdade é que ele nunca havia presenciado Luíza naquele estado.
Quando entendeu que ela estava mesmo decidida a se separar, Carlos sugeriu terapia de casal. Luíza franziu a testa. Todo mundo já fez terapia de casal, se não fez, um dia vai fazer - argumentava com gestos largos. Luíza colocou os headphones e foi ler um livro na sacada. Jogou-se na rede, abriu a página marcada com o cartão de visitas do primeiro restaurante que foram juntos, até Carlos interromper, insistindo que deviam ver sim, um especialista. Luíza não queria conversa. Nem com Carlos, muito menos com um terapeuta. Ela preferia jogar búzios, fazer o mapa astral, ir num pai de santo, terapia, não. Terapia lembrava sua adolescência rebelde, quando era obrigada a toda semana, sentar-se numa poltrona dura dentro de uma sala com o ar gelado e falar sobre a sua vida durante exaustivos cinquenta minutos. Carlos insistiu que era importante, contou como os seus pais resgataram o casamento que a família, os amigos e eles próprios davam por falido. Luíza pediu licença, foi até o hall, ajeitou as almofadas no chão, acendeu um incenso de lavanda e foi meditar, precisava clarear as ideias.
Carlos entrou em pânico, decidiu pela terapia sozinho. Luíza pegou o protetor solar, a bolsa, os headphones e voltou para o mar. Carlos seguiu na terapia. Luíza permaneceu na areia. Carlos intensificou as sessões. Luíza seguiu cabulando as aulas da faculdade. Levou um tempo para Carlos finalmente compreender que Luíza era uma mulher de alma livre, desapegada. Essa foi a primeira vez que Carlos viu Luíza, que voltou a sorrir.