Ela não vai mais voltar



É preciso que saiba, rapaz: ela está indo embora. Ela jogou a toalha e compreendeu que não há mais nada que a prenda a você. Ela não encontrou nada além de um amor quebrado, que a fez sentir-se pela metade. E ela não gosta de metades. Ela não sabe ser pela metade. Pelo contrário, o que ela sente é fome de mundo, voracidade pelo que se oferece inteiro ao paladar e todos os demais sentidos. O que ela quer é muito comparado ao que você ofereceu.


Ela está indo embora e é preciso que você saiba que quando ela parte, segue em frente e quando vai, não vacila na direção. Não perca tempo experimentando novos jogos, tentando chamar a atenção – essa atenção já não é mais sua e ela cansou porque entendeu como você funciona – e por isso mesmo não funciona mais.


Se ainda houver a mais sutil esperança, faça o favor de não nutrir o mínimo grão. Seria tão eficiente quanto alimentar um cadáver – o que já está morto não precisa ser dado de comer. Logo ela, que se encheu de vida quando esteve com você, quando você esteve inteiro junto dela.


Se o que viveram significou alguma coisa para você, guarde com delicadeza lembrança a lembrança, reserve punhado a punhado da história e embrulhe dentro de si. Dê um laço para enfeitar ou um nó para não escapar. Faça com gentileza semelhante a que ela esparramava despretensiosamente os próprios pertences na mala antes de ir embora. O descaso como companhia. Não é possível apreender o tempo. Com ele, a gente só aprende. E você não pensou que ela fosse resistir por muito tempo. 


Ela dobrou as roupas com a calma de quem conta os segundos no relógio, sem qualquer urgência de concluir o trabalho. E fez isso não para ganhar tempo de certificar-se da própria decisão, mas porque pela primeira vez sabia que seria sua última vez ali. Ela não precisou revisitar os cômodos da casa para se despedir - já fizera isso muito antes, você que não percebeu. Apenas respirou com vagareza o último ar, cheiro de flores murchas mesclado a diminutos sopros de vida. Logo ela que sempre foi de absorver tudo até o fim.


Acontece que ela demorou a absorver o final de vocês, pois todos os instantes pregressos foram pedacinhos de despedida, como cacos de vidro a perfurar a pele, deixando pequenas cicatrizes. Não se espante, mas ela jamais soube se os seus olhos marejavam ou estavam vazios de afeto. Porque quando ela vai embora, ela não costuma olhar para trás.


Aliás, da última vez que te olhou, já era inverno em pleno mês de abril. Mas de uma coisa, não tenha dúvidas: ela o amou. Ela o amou mais do que podia, de um jeito que nunca soube explicar e por isso nunca se atreveu a tentar. Amou mais do que cabia nela. Por isso o sopro, por isso o movimento de expulsar aos poucos esse amor de dentro de si. Ela foi tornando-se vazia de você.


Ela está indo embora, rapaz e segue sem temer ou questionar a desistência, não se consome em medo de futuro porque já teve passado o suficiente para saber o que vem depois. O medo que existiu foi o da perda. E ela se perdeu. Não há como acrescentar mais realidade à vida. Talvez você nunca tenha observado ou tido a chance de conhecer a mulher que existia atrás daqueles olhos noturnos.


Ela está indo embora e leva na bagagem a certeza de que perder pode oferecer a graça do ganho. E ela precisou perdê-lo para resgatar a si. Você já não pode ver, mas meus olhos ainda a alcançam e ela está indo de volta pra ela. E pra você ela não vai mais voltar.

Gabriela Gomes

9 comentários:

  1. A percepção pode salvar vidas inteiras de um final assim mas a evolução sentimental passa por essas transformações. É necessária para o amadurecimento tanto de quem vai e principalmente de quem fica.

    Outra bela descrição, srta.

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    1. Ah, as transformações! Que nos devolvam sempre mais inteiros e melhores. Obrigada, querido!

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    2. O Teatro está esperando suas impressões, srta. Gabriela.

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  2. Amo ler vc! é como te tenho por perto todo dia!

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    1. Lindona! Coisa boa saber que estás sempre pertinho. Te amo! Beijos.

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  3. Estou em prantos.. Parabens pelos textos

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  4. Estou em prantos.. Parabens pelos textos

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