CARTA PARA O CÉU

Meu para sempre querido, vô,




Noite passada sonhei com você. E era como se o tempo nunca tivesse passado para nós. Você trazia flores nas mãos, um sorriso tranquilo na boca pequena e mantinha os olhos fechados enquanto caminhava em minha direção.

Seus braços eram compridos, e eu podia imaginar como seria caber em seu abraço. Os cabelos também estavam diferentes, agora eram bem mais ondulados – mas ainda tão escuros quanto os seus olhos - que eu não podia ver. É meio louco, mas me senti uma completa desconhecida no meu próprio sonho. Não tinha autonomia alguma, não importava qual fosse a minha vontade.

Deve ser verdade mesmo o que dizem, de que a gente sonha com nossos medos, saudades e desejos. Eu até senti medo no começo, mas deu uma saudade tão grande e vontade de continuar no mesmo sonho por dias a fio.

Quando você chegou até mim, se desfez das flores, deixando que caíssem na terra úmida, e em seguida esticou os braços compridos na minha direção. Nessa hora tive medo, mas reconhecer sua voz me aliviou. Você ofereceu a palma das mãos para que eu cheirasse. Disse que flores cheiravam ternura.

Eu sabia que era você no sonho. Mas com os olhos fechados o tempo todo, como eu poderia ter certeza que você sabia que era eu? Como você ainda se lembrava? Por que você não olhou para mim? 

Acordei com uma sensação estranha. Parecia que tinha sido a última vez que nos veríamos. Ou melhor, que eu veria você. Sabe, depois de tanto tempo eu voltava a experimentar a mesma sensação de quando trouxeram a notícia de que você havia falecido. Nunca esqueci daquele dia. Tava nublado, o tempo se armando para chuva. 

Depois que me contaram que você havia se ido, lembro que senti uma enorme vontade de ouvir música. Mas como era muito menina, pensava que era errado fazer qualquer coisa que pudesse aliviar a dor. Hoje não penso muito diferente, mas eu sei que você gostaria que eu tivesse acompanhada de música. Você gostava tanto.

Hoje durante o dia, forcei a memória e o seu rosto me faltou. Já não conseguia mais montar seus traços em minhas lembranças. Faz tanto tempo desde a última vez. E eu que sempre evitei seus retratos, tô me sentindo um fracasso. Tentar lembrar alguém que amamos por uma vida e ser derrotada pelo maldito tempo, pela inabilidade. Legítima insuficiência.

À noitinha, a mãe chegou com flores em casa. Disse que eram as suas preferidas: “Ele adorava”. Como cheiram bem! Eu até trouxe um vasinho com uma delas aqui pro quarto. Quando não tem ninguém olhando, fecho os olhos para sentir o aroma. Só agora eu compreendi, vô. Cheiro de ternura.

Com todo amor.
Sua neta,

Gabi.

2 comentários:

  1. Anônimo09:24

    A gente premedita muitas coisas em sonhos. Sobretudo a dor que sentiremos, o adeus que seremos obrigadas a dar.
    Fique bem. Abraços.

    ResponderExcluir
  2. É isso. :) Obrigada! Abração.

    ResponderExcluir

Obrigada pelo seu comentário.

 
A Cronista © 2013 | Gabriela Gomes. Todos os direitos reservados.