SEGUNDA CHANCE

Querida Nely,

Oi, vó. Já faz algum tempo que não te escrevo. Na verdade, faz algum tempo que eu já não sinto vontade alguma de escrever. Sobre nada. Para ninguém. Já sentiu isso de perder o prazer em algo que adorava fazer?

A vida por aqui tem estado complicada, tu já deve ter percebido. E se estivesse aqui, bem sei o que dirias: - Minha filha, não é fácil pra ninguém. Ah, vó. Eu sei. Eu sei! Todos dizem! Como também falam que tudo vai melhorar. Como podem saber? Serão profetas? Eu entendo das boas intenções, mas tá tão difícil. O nosso tempo, talvez não seja mesmo o tempo de Deus.

Por falar em Deus, espero que estejas bem. Mas como eu queria que Ele tivesse te deixado um pouco mais aqui. Um pouquinho que fosse, mesmo que os momentos que compartilhamos tenham valido por uma vida.

Quando as coisas ficam embaraçosas, me ponho a pensar no que me dirias, qual seria o conselho de ouro. É engraçado, a gente sempre acha que os mais velhos são os guardiões das respostas de todas as perguntas. Bobagem minha, mas juro não te imaginar com uma dúvida sequer, sem saber que rumo tomar – ainda que eu tenha conhecimento de que a vida não tenha sido sempre generosa com a tua história. De toda sorte, sei que fostes feliz.

No fundo, sabes o que me fez parar de escrever. Meu pai. São sempre eles os culpados? Por que será que a gente pensa em punir quem a gente ama castigando a nós mesmos? Depois das nossas brigas, não tive prazer algum em escrever uma vírgula. Foi pra ele que comecei a escrever, lembra?

Nunca me passou pela cabeça que as coisas chegariam a tal ponto. É estranho não reconhecê-lo mais. É mais estranho ainda, saber que não o terei mais. Ao menos, não como antes. Já não são os mesmos olhos, são dois pontos vazios. Eu não concordo com o que ele fez com a gente e não suporto ser testemunha do que está fazendo consigo. O pai não se perdeu de nós, Nely, ele, antes, se perdeu dele. E como isso é triste. Como achei que fosse morrer dessa tristeza, meu Deus!

Eu juro que tentei ajudá-lo. Ah, como eu tentei! Comprei a causa, briguei por isso. Mas cada um tem o seu livre arbítrio. Fiz o que pude. Estiquei os braços para alcançar o mais longe que conseguia. Foi insuficiente.

Não foi não aceitar somente aquilo que ele podia dar. Mas é que não fez questão alguma de ser o melhor que podia para nós e por nós – incluindo a mãe, a mana e ele próprio. Quantos recalques um adulto suporta na bagagem? Qual o peso de chegar aos cinquenta e se dar conta que não fez metade das coisas que desejava pelo medo de fraquejar? A vida, às vezes, é um peso. Mas acredito que mais por culpa da gente.

Sabe o que ele disse da última vez? Que não tem mais coragem de me olhar nos olhos. Será que ainda se reconhece no reflexo do espelho? Pudera! Quanto espelho mofado não há de ter por aí. Quanta gente que mal lembra o que é mirar nos próprios olhos. Fixe mais de dez segundos e terás medo. O que falta pra gente se conhecer, assim, pra valer? Será muito?

Eu já compreendi que não cabe a mim salvá-lo. Na última vez que pediu desculpas chorando, dizia que eu tinha uma cabeça boa, para no dia seguinte, me confundir, cometendo os mesmos erros. Sabe o quanto isso pode ser enlouquecedor? É como se renovasse as próprias mágoas para poder afogá-las. É como se sentisse sede de uma nova existência e achasse que conseguiria bebê-la em várias doses de whisky. E quantas doses, vó.

Espero que ainda reste tempo de salvar a mim. É a forma mais possível que tenho de salvar parte do que restou de bom nele. Não digo que sou o que ele tem de melhor, mas quero lembrá-lo que um dia, me ensinou a ser correta. Parece que só agora eu entendi, vó: Filhos são esperança. Uma segunda chance para você se tornar alguém melhor no mundo.Viver é isso. Erros, acertos, mas sobretudo, tentativas.

Beijos.
Com carinho,

Gabi.

9 comentários:

  1. Parabéns...
    e vou deixar uma bela canção q fala bem sobre isso... Coragem e força em sua caminhada... Bjs

    http://www.youtube.com/watch?v=pQ0fLQvVCiw

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  2. Gabi...fazia um tempo que não me emocionava com um texto...pode ser que seja por conhecer os envolvidos e inclusive a destinatária de tão emotiva carta, mas a vida é assim e assim são os percalços que temos que dignamente, ou nem tanto assim, encarar quando deixamos de brincar de ser adultos e encaramos os problemas de frente!

    Bjão!!! Te cuida!

    Ps: Não pára de escrever nunca!!! Menores são as nossas dores quando podemos passá-las para o papel... o papel não sente nada, mas quem diria que isso alivia tanto à quem nele escreve?

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  3. Rafa,

    Escrever é mesmo uma forma de organizar a nossa casa interior. Mas eu precisava de tempo para arrumar as coisas e voltar a receber visitas.
    As portas estão, mais uma vez, abertas. E tu és muito bem-vindo!

    Um grande beijo.

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  4. Gabriela,
    A escrita é sempre catártica, ela nos cura, ou no mínimo, organiza.Teu texto é muito bom,guria.

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  5. O texto é mesmo uma segunda chance, não é, Adriana? Tu tens razão. Tens toda razão. Obrigada e um grande abraço!

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  6. Texto bonito Gabi, sincero :) Fazia tempo que nao vinha aqui. Nem sei o que dizer.

    Beijo

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  7. Diga nada, não, Andersonn querido! Teus olhos atentos valem todas as palavras.

    Beijos

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  8. Nossa Gabriela, esse carta é muito viva, voce conseguiu me levar em vários lugares onde estive com pessoas queridas, a arte bem expressa tem disso, leva nossa alma pra passear.
    A muito não vinha aqui no blog, mas me lembrei que alguem usava a internet pra escrever coisas lindas com uma nobre modestia.
    Para de escrever não, nunca.
    Luz
    E obrigado pelo passeio.

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    1. Obrigada pelo teu carinho, Douglas. Fico feliz pelo passeio. :)

      Abração.

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