Carta para alguém que partiu



Se existe mesmo uma grande fenda por onde a luz adentra a terra trazendo e formando o dia, especialmente hoje ela está mais larga - pois faz sol.

Após afazeres matinais desimportantes, com a janela do quarto escancarada voltei até a cama e joguei o corpo sobre o lençol de cor semelhante ao céu e fiquei brincando de procurar teu rosto nas raras nuvens que boiavam no ar. Não encontrei. Ainda assim consegui sorrir.

Mas isso foi só depois de saber que hoje faz um ano. Ainda me pego estarrecida de como o inconsciente está sempre tentando nos dizer alguma coisa – por isso aprendi a não duvidar mais de mim e ficar atenta aos sinais. Vigiar os pensamentos, sonhos e separar as supostas fantasias.

A gente sabe muita coisa sem saber. Quer dizer, a gente simplesmente sabe porque os registros mais significativos permanecem impregnados pele adentro, emaranhados nos ossos, músculos, pulsantes nas veias, saltando no núcleo das células nervosas – digo eu que não entendo quase nada de biologia, genética, mas sei alguma coisa da vida.

Ainda ontem antes de dormir, já sonolenta, busquei o celular na cabeceira da cama para ver o calendário e a ordem dos dias, pois pensava em ti. Tua imagem me veio à lembrança. Confundi as datas, e já estava fazendo exato um ano da tua partida. Diferente da noite que antecedeu teu adeus, tive um sono pesado e profundo – embora de poucas horas. Esqueci de rezar, não lembrei do vô, não lembrei da vó. Não andava com ideias estranhas na cabeça. Nem sentia um medo inexplicável e sem nome.

Levou algum tempo, mas hoje já consigo lembrar de ti com serenidade. Falar da tua partida com discernimento, tranquilidade e com a empatia de quem sabe o quanto viver não é fácil. E que, às vezes, dói insuportavelmente. Mentira, muitas e demasiadas vezes dói irremediavelmente. Eu sei. E se ainda existe alguma ligação, tu sabe que sei.

Aqui é primavera e hoje faz um sol danado de bonito, aposto que ideia tua, né? Diferente da névoa cinzenta que cobria a cidade naquela segunda-feira que nunca esqueci. Paradoxalmente, às vezes parece mais e outras menos que um ano. Talvez o tempo ora congele, ora volte a correr. Não sei bem.
A saudade alterna de tamanho, mas a memória continua sempre fresca e viva.

Conversei com algumas pessoas que vivem com saudades tuas. Tu sabe de todas elas. Vamos então fazer um trato? Fala com o responsável aí de cima e pede para aumentar a fenda por onde a luz adentra a terra, quem sabe assim a gente tenha mais sol beijando a nossa pele, acariciando nossos corpos, aquecendo o coração. Independente disso, nossos olhos continuarão suados de saudades. 

Gabriela Gomes

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